Não foi a Igreja que se radicalizou, mas foi “o mundo” que se alinhou com um neoliberalismo que é o antagonista por excelência da moral social católica (muito mais antagonista do que o comunismo: nesse sentido, catolicismo e comunismo são parentes como as duas formas mais duradouras de universalismo).
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítioTheHuffingtonPost.it, 09-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ainda não sabemos o que o presidenteObama vai presentear ao Papa Franciscona visita à Casa Branca no fim de setembro, mas certamente não vai ser um crucifixo de foice e martelo como o que lhe foi dado pelo presidente boliviano Evo Morales (a mesma coisa pode ser dita sobre as folhas de coca). É difícil imaginar João Paulo II ou Bento XVI com um objeto desse tipo entre as mãos: mudaram os líderes sul-americanos e mudou o papa de Roma.
O crucifico de foice e martelo pode fazer alguns sorrir e pode horrorizar todos os outros. Desde a sua eleição, nos ambientes conservadores e tradicionalistas, vê-se em Francisco um papa comunista e potencialmente herético. Mas o problema não é só dos católicos e da luta interna da Igreja pela interpretação deste pontificado: nesses últimos dois anos, com a exortação Evangelii gaudium e a encíclica Laudato si’, Francisco se tornou, por falta de outros atores na cena, no maior intérprete global de um modelo de desenvolvimento diferente daquele que, na encíclica, ele chama de “paradigma tecnocrático”.
Ao contrário de Tsipras, quando Francisco foi ao Parlamento Europeu, em novembro de 2014, os aplausos lhe chegaram também daqueles setores para os quais esse “paradigma tecnocrático” é um verdadeiro dogma de fé (sendo a economia também um sistema de crenças).
Na verdade, o Papa Francisco inovou pouco no plano doutrinal. Os princípios-base da doutrina social da Igreja na sociedade e economia modernas se atualizaram, mas não foram abalados nos quase 125 anos que se passaram desde a encíclica Rerum novarum de Leão XIII (1891); a encíclica Populorum progressio de Paulo VI (1967) tem um tom mais “marxista” do que a Laudato si’ (por exemplo, quando o Papa Montini falava do papel histórico dos pobres); com a Caritas in veritate (2009), até mesmo Bento XVI tinha assumido de modo convincente aqueles valores de referência para uma crítica do capitalismo global.
A mensagem social do catolicismo não se converteu tardiamente ao comunismo, ou, melhor, alguns pontos de contato entre cristianismo e marxismo sempre houve (e Wojtyla tinha reconhecido isso depois da queda do Muro de Berlim).
Mas a percepção de uma radicalização política do papado se deve ao fato de que dois elementos mudaram bastante em relação à época do Concílio Vaticano II e de Paulo VI. O primeiro elemento é a pessoa do Papa Francisco, um jesuíta conhecido ainda hoje na América Latina pela sua oposição aos extremismos ideológicos dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, pela sua oposição ao catolicismo desencarnado em relação ao grito dos pobres.
O espírito anti-ideológico e o testemunho de vida evangélica de Bergoglio colocam-no a salvo das manipulações.Bergoglio é teológica e politicamente um centrista, que passa por extremista, por causa do testemunho de vida que desde sempre deu e por ter feito isso na América Latina, continente mais do que outros sujeito a leituras ideológicas contrapostas (tanto ideologias políticas quanto religiosas).
O segundo elemento é o deslocamento “à direita” do eixo político-ideológico no Norte global, em tal medida que um católico que hoje retome algumas passagens das encíclicas sociais pode ser acusado de comunismo (como, por exemplo, acontece nos Estados Unidos, quando se tira o pó daquilo que a Igreja diz sobre os direitos sindicais).
Não foi a Igreja que se radicalizou, mas foi “o mundo” que se alinhou com um neoliberalismo que é o antagonista por excelência da moral social católica (muito mais antagonista do que o comunismo: nesse sentido, catolicismo e comunismo são parentes como as duas formas mais duradouras de universalismo).
Também faz parte dessa mudança o desaparecimento de uma geração de políticos católicos que não se envergonham dessa cultura política e que sabem algo dessa tradição de pensamento.
Nesse deslocamento, é evidente que o progressismo (a social-democracia na Europa, o Partido Democrata nosEstados Unidos) perdeu a voz, se não justamente a alma. Esse descompasso ideológico faz com que o papa “que veio do fim do mundo” pode ser ainda o papa do fim da Europa como seria uma Europa sem a Grécia.
Não é nenhum segredo que os sentimentos do progressismo europeísta foram interpretados mais eficazmente (e inesperadamente) pelo Papa Francisco do que pelo Partido Socialista Europeu e pelos seus partidos membros em tempos recentes. É uma questão não só europeia. Não é por acaso que, entre os candidatos às eleições presidenciais norte-americanas de 2016, o único que cita o Papa Francisco é Bernie Sanders, senador socialista judeu e agnóstico de Vermont, e que a cultura católica de Obama era muito mais visível no candidato Obama do que durante a sua presidência.
Esse paralelogramo ideológico representa um problema não só para os cenários políticos, mas também paraFrancisco, que lida com uma Igreja cada vez mais complicada de governar e às vésperas de um semestre crucial para o pontificado.
Além da novidade do bispo de Roma não europeu, a Igreja agora também deve aprender a gerir um enorme vazio político à esquerda do papa. Talvez não seja por acaso que o bispo de Roma em questão é um jesuíta latino-americano.