A humanidade não será capaz de derrotar o capital, mas já começa a organizar novos padrões de sociedade que podem evitar o fim do planeta. Essa é a análise do teólogo, escritor e professor Leonardo Boff sobre o futuro da “Casa Comum”, termo cunhado pelo Papa Francisco para se referir ao mundo em que vivemos.
“Eu acho que não conseguiremos derrotar o capital com os nossos meios. Quem vai derrotar o capital será a Terra, negando meios de produção, como água e bens de serviço, fazendo com que fechem suas fábricas, que terminem grandes projetos ilusórios de crescimento”, projeta.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato e ao Jornalistas Livres durante a 15ª Jornada de Agroecologia, Boff também mostra otimismo ao identificar novos modelos de organização, que têm como objetivo central a subsistência e o cuidado com a natureza, como os ensaios de biorregionalismo.
“Há mais de 1010 lugares onde se tenta viver de forma sustentável, superando os limites artificiais que os seres humanos estabeleceram que são os municípios e regiões geográficas”, explica.
O teólogo também comenta o cenário político que antecede a votação do impeachment no Senado. “Se Dilma tiver que sair, posso imaginar que esse país irá parar, porque Temer é um presidente que não tem legitimidade, que é refém de si mesmo e que não pode sair às ruas sem ser vaiado”, pontua.
A entrevista é de Camilla Hoshino e Camila Rodrigues da Silva, publicada pelo jornal Brasil de Fato, 02-08-2016.
Eis a entrevista.
Casa Comum e a agroecologia
Há duas categorias básicas sem as quais nós não garantimos o futuro de uma nova civilização. A primeira é a sustentabilidade, que garante a manutenção dos seres e sua reprodução para nós e para as futuras gerações.
Mas a sustentabilidade sozinha não tem força intrínseca de se realizar. Ela precisa do cuidado. O cuidado proporciona uma relação contrária à agressão da modernidade, que é violenta, que destrói, que exaure os ecossistemas.
Então, o cuidado não é apenas um gesto, mas um paradigma. Isso significa um conjunto de valores, de ciclos, de atitudes que tenham como efeito a proteção e a manutenção daquilo que existe e daquilo que vive. A categoria cuidado tem uma função de pilastra que sustenta um novo ensaio civilizatório.
É importante o que o Papa deu como título da encíclica: “Cuidando da Casa Comum”. Se nós não cuidarmos da nossa casa ela vira uma tapera e ninguém mora numa tapera. Ela vai perdendo a chamada biocapacidade, que é sua capacidade de produzir vida e pode ameaçar o futuro da espécie humana e a vida da natureza.
Nós chegamos a um ponto em que é fundamental cuidarmos de tudo e responsabilizar-nos pelos seres que estão aí, porque a biodiversidade, que é a relação de todos com todos, cria aquela teia que sustenta a todos e leva o processo avante.
A agroecologia entendeu que ela deve produzir segundo os ritmos e a lógica da natureza, não segundo a lógica da produção que é a superexploração. É preciso tirar dela o que precisamos, mas deixar tempo para ela se auto-reproduzir e para continuar dando para nós e para a comunidade de vida.
Não basta só produzir elementos bons para a saúde humana, a agroecologia implica uma relação nova com a natureza. É uma relação de respeito e de cooperação. Nós estamos em cima dela não de pulso cerrado como quem domina, mas com as mãos estendidas como quem acaricia.
Biorregionaismo, um outro modelo de relação com a Terra
Hoje, há pelo menos 1010 ensaios de biorregionalismo, que trazem um desenvolvimento adequado a uma biorregião, a um território. Aproveitam-se os meios, bens e serviços que a natureza dá, produzindo de forma coletiva pequenas empresas absolutamente de forma orgânica, conhecendo a tradição daquele território, conhecendo como foram feitas as suas montanhas, como são seus rios.
Essas experiências iniciaram na Escócia e foram se espalhando pelo mundo. Hoje, há muitas comunidades na Índia, em Minas Gerais, no Brasil. Não saberia dizer os países, mas sei dizer os números. Há mais de 1010 lugares onde se tenta viver de forma sustentável, superando os limites artificiais que os seres humanos estabeleceram que são os municípios e regiões geográficas. Dentro desses espaços se procura aproveitar de forma mais racional. É uma economia da subsistência e não da acumulação.
Entende-se que é preciso melhorar as matas ciliares para que as águas continuem abundantes, as empresas pequenas para não termos que transportar de outros mercados, gastando petróleo e poluindo mais, integrar as pessoas, conhecer a historia da região, a culinária, as pessoas notáveis que lá viveram, seus poetas, seus artistas, seus cantadores. É a ‘Casa Comum’ mesmo. É não ver a Terra apenas como um modo de produção, que é o que o capitalismo faz a partir de uma visão meramente instrumental.
Percebo viajando que há uma consciência nova que está surgindo. E se partimos da interpretação de que a Terra é um organismo vivo, de que há viva em cima dela, de que há propósito, ela mesma suscitará novos imaginários, novas utopias, novas maneiras de produzir e construir as casas, de utilizar bens e serviços de modo que se reduza a pobreza a formas responsáveis e suportáveis.
Essas biorregiões precisam ser abertas a outras comunidades, porque há coisas que não conseguem manter como, por exemplo, luz e internet. Então, por todas as partes é isso que nos dá esperança. O ser humano está tomando consciência do risco que ele corre e que ele pode, com tecnologia e inteligência,encontrar saídas salvadoras.
Mudanças culturais e políticas
Nós temos um grande problema, porque, teoricamente, nós desmontamos o sistema do capital. Sabemos que ele comete duas injustiças. De um lado, ele acumula muita riqueza em poucas mãos enquanto existe uma imensa pobreza. Essa é a injustiça social.
E ele comete uma injustiça ecológica devastando inteiros ecossistemas, produzindo verdadeiros desertos, especialmente a mineração. O capitalismo é um sistema bom para produzir riqueza, mas péssimo para produzir igualdade e justiça.
Mas nós somos vítimas ainda da cultura do capital que é a sua grande força, que nos obriga a trocar, de tempos em tempos, o celular, o tênis, seguir a moda, comprar seus produtos que estão em abundância. Então ele nos faz consumistas. Mudar isso exige educação e pensamento. Estamos bastante atrasados.
A partir dos últimos dados que a ONU publicou, sabemos que precisamos de 24 elementos que são fundamentais para sustentar a vida, a água, o solo, o clima, as fibras, os metais fundamentais para construirmos instrumentos, entre outras coisas. Desses 24, 15 estão em alto grau de erosão. Dois destes elementos podem significar o colapso da nossa civilização: a falta de água e o aquecimento global. O cruzamento dos dois pode produzir um desastre mundial com a fome de milhões de pessoas que não vão aceitar o veredicto de morte sobre elas. Pode ser uma catástrofe mundial.
Irracionalidade do capital
O sistema do capital se dá conta de que ele não consegue se reproduzir. Ele só faz mais do mesmo. Isso Marx já dizia. Quando o capital se esgota a partir dos bens que ele pode explorar, ele vai explorar o dinheiro. Hoje o capital se utiliza da especulação. São 60 trilhões que estão na produção, produzindo carros, geladeiras, sapatos e 300 trilhões que estão na bolsa, na especulação, no dinheiro virtual que não existe, mas que pessoas trocam e negociam. O grande propósito histórico desse sistema é acumular o máximo possível.
Eu acho que não conseguimos derrotar o capital com os nossos meios. Quem vai derrotar o capital será a Terra, negando meios de produção, como água e bens de serviço, fazendo com que fechem suas fábricas, que terminem grandes projetos ilusórios de crescimento.
Mas ele pode produzir grandes consequências negativas para a humanidade. Ele desestabiliza governos para implementar o neoliberalismo, que é a máxima acumulação de capital. Nos Estados Unidos, 1% acumula o correspondente a 90% da população. No Brasil, 71 mil pessoas controlam mais da metade de renda nacional. E com esse dinheiro manipulam o Estado, compram políticos e manejam o funcionamento da economia. Isso mostra a irracionalidade do sistema.
Então, nós estamos numa crise sistêmica. Por isso temos que conscientizar as pessoas, temos que ser chatos no sentido de retomar continuamente as questões ecológicas. O Papa escreve a Encíclica não para cristãos, mas para a humanidade. O tempo do relógio corre contra nós. Ou mudamos agora ou será tarde demais.
Dois sistemas em jogo
O que está em jogo são dois sistemas. Um sistema que supõe uma sociedade menor para 20% das pessoas, que terão os melhores produtos. É o projeto de uma sociedade mais fechada, de uma democracia mais reduzida, de baixa representatividade, que é o neoliberalismo puro.
E o segundo projeto que existe é o de uma democracia mais aberta, que se abre para questões sociais, visando inclusão dos que historicamente estavam excluídos. Esse era o projeto do Partido dos Trabalhadores (PT) e de seus aliados, que buscava criar significativas políticas sociais para matar a fome para propiciar casa, luz, acesso a bens, crédito consignado e formas de organizarem cooperativas, apoio à agroecologia. etc. Essa ainda não é a solução, mas já abre um caminho de esperança.
Mas não basta só criar consumidores, fazer com que pessoas tenham acesso a bens. É preciso criar um cidadão crítico, que critica o sistema, que quer uma democracia não só representativa, mas participativa, que quer uma escola melhor, transporte melhor, espaços de cultura e de lazer. Isso não foi tão acentuado no projeto do PT e de seus aliados. Fez-se bastante, mas a fraqueza é que, com a crise, esses que eram apenas consumidores e saíram da fome, correm risco de voltar à antiga miséria. Se fossem cidadãos críticos, buscariam caminhos alternativos.
Então, há duas visões de mundo que se chocam e aqui vem a pergunta: qual delas carrega uma esperança de futuro? Não é a primeira, porque ela já que tem 200 anos produzindo desgraça na maioria dos continentes. Essa nova democracia aberta, mais humana e mais amiga da vida, é que é portadora de esperança. Ela está acumulando energias até produzir um tsunami de boa vontade e criatividade. Aí sim começa para mim o século XXI.
Cenário Dilma ou Temer
A situação atual política do Brasil é extremamente confusa. É uma espécie de voo cego e ninguém pode dizer para onde nós vamos. Se o impeachment se confirmar e Dilma tiver que sair, posso imaginar que esse país irá parar, porque Temer é um presidente que não tem legitimidade, que é refém de si mesmo e que não pode sair às ruas sem ser vaiado.
Ele tem baixíssima aceitação popular. Ele irá criar um problema social que irá desembocar em um problema politico. Isso se dá principalmente pela montagem extremamente excludente que fez, pelo ataque aos programa sociais inaugurados pelos governos de Dilma e Lula. Essa situação vai forçar possivelmente a um plebiscito e voltaremos ao primeiro parágrafo da Constituição que diz que é o povo quem deve decidir, pois é ele o sujeito do poder.
O outro cenário é que Dilma volte. E há uma disputa grande entre os senadores para conquistar os indecisos.
Se ela voltar, ela mesmo já prometeu que irá fazer outro governo. Ela descobriu o povo brasileiro e seu carinho, principalmente por parte das mulheres. Então, ela fará um governo diferente, possivelmente com pessoas notáveis do país, para além dos partidos.
Ela vai atacar o que é mais urgente, que é o problema econômico e encaminhar a reforma política, porque com esse parlamento que esta ai não é possível fazer quase nada. Ele é um dos mais retrógrados e reacionários da história republicana brasileira. Se ela voltar será outra Dilma, com outras políticas e outras estratégicas.
Agora, não sabemos como será a votação do impeachment. Espero que haja o mínimo de racionalidade e que se compreenda a argumentação.
Há uma lei que está presente em todas as jurisdições desde Hamurabi até os tempos modernos, que é in dubio pro reo. Isto é, se há dúvida, então o réu tem primazia.
Os grande juristas, como Dalmo Dallari, dizem que não há crime. Mas o maior argumento para mim é o do Ministério Público Federal que diz: ‘Aqui não houve dolo, não há crime, então aconselhamos engavetar o processo’.
A pressão não é apenas brasileira, mas internacional. No fim, se trata de defender o pouco de democracia que temos. Por mais frágil que ela seja, ela ainda é o lugar em que pudemos conviver e discutir nossos representantes. Dilma representa a democracia. Negar Dilma é negar a democracia. E negar a democracia é golpe. E nós temos que dizer que é golpe mesmo.