A esquerda na América Latina: dos militantes clássicos à mobilização baseada em pautas concretas. Entrevista especial com Bernardo Gutiérrez (IHU/ADI)
IHU – Unisinos
Adital
Depois de mais de uma década de governos “progressistas” em alguns países da América Latina, muitos movimentos sociais “foram cooptados pelo Estado”, “perderam energia” e “ficaram estagnados em estéticas, relatos e mitos do passado”, dialogando “mal com o novo”. Em contrapartida, o “DNA ancestral colaborativo latino-americano e algumas cosmovisões como o ‘Buen Vivir’ convivem com as dinâmicas tecnopolíticas, a cultura de rede e o hacktivismo” e tentam reorientar o sentido do que seria uma agenda “progressista” para a América Latina, diz o jornalista .
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gutiérrez frisa que “mecanismos orientados ao bem comum como a minga kichua, o tequio náhuatl mexicano ou o ayni aymara da Bolívia renascem na era da rede” e é neles que é possível enxergar “o grande potencial narrativo e organizacional da América Latina”.
Gutiérrez participou de uma série de coberturas jornalísticas acompanhando os governos progressistas latino-americanos e faz uma análise da condução política de alguns governantes, pontuando que neste momento “a esquerda latino-americana deveria estudar a decadência e os erros cometidos pelo PT” para “evitar o rumo neodesenvolvimentista do Brasil” e “ter claros os limites da inclusão pelo consumo sem direitos”. Para ele, o “ponto crucial” a ser perseguido pela esquerda latino-americana é a ecologia, já que os governos desenvolvimentistas das esquerdas “tiveram uma nula sensibilidade ambiental”.
Bernardo Gutiérrez González é jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro residente em São Paulo. Escreve sobre política, sociedade e cultura brasileira e latino-americana, movimentos sociais, processos tecnopolíticos e redes. No ano passado apresentou a pesquisa latino-americana Nuevas Dinámicas de Comunicación, Organización y Agregación Social. Reconfiguracines tecnopolíticas, para OXFAM (Comitê de Oxford para Alívio da Fome) e dirigiu o projeto Wikipraça, para a Prefeitura de São Paulo. Acompanhou o desenvolvimento dos governos progressistas latino-americanos, do zapatismo à chegada do Evo Morales ao poder, passando pelo lulismo.
Nos últimos anos, participa, escreve e pesquisa sobre tecnopolítica e sobre o ciclo de protestos aberto pela Primavera Árabe. Acompanhou de perto e por dentro as jornadas de junho e sua evolução, sendo um dos editores do livro JUNHO: potência das ruas e das redes. Ao mesmo tempo, nos últimos dois anos e meio, ficou envolvido no projeto equatoriano Buen Conocer/FLOK Society, uma tentativa de mudança de matriz produtiva do país, baseada no Buen Vivir e nas tecnologias livres.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como percebe a América Latina hoje em termos políticos? E em termos econômicos?
Bernardo Gutiérrez – Vivemos tempos de instabilidade política, de mudanças, mas há muitas falácias sobre as causas dessa instabilidade. É verdade que o grande capital, as elites globais e o governo dos Estados Unidos não pararam de manobrar contra os chamados “governos progressistas”; Wikileaks revelou isso recentemente. É um novo tipo de intervenção, mais sutil, que trabalha o simbólico e as relações econômicas dos atores regionais. Porém, é um exagero falar de “golpe” e “imperialismo”, como fazem os governos progressistas e os movimentos sociais de esquerda. Basear a economia na exportação de commodities, como quase todos os países do eixo progressista, tem um preço. A queda do preço do petróleo foi um duro golpe e a aposta do fracking no território americano não é casualidade.
Os problemas econômicos da China, que afetam o continente todo, especialmente o Equador, também justificam a tormenta. Politicamente, a América Latina é mais poliédrica e complexa do que os dois bandos históricos gostariam. Então, existe uma instabilidade política, provocada em parte pela crise econômica e em parte por essas manobras das potências globais.
Mas acho que o principal motivo é outro: existe um abismo entre a narrativa do bloco progressista e suas práticas políticas. Na maioria dos casos, esses governos abraçaram o capitalismo, apostaram tudo na inclusão pelo consumo. O consumismo virou a nova ideologia de consenso.
Então, a instabilidade política vem principalmente da tensão entre as novas sensibilidades e práticas políticas da cidadania e esse relato de “esquerda” da era industrial ou pós-colonial. Ao mesmo tempo, as novas gerações têm valores tolerantes com o aborto e o casamento gay, enquanto a maioria dos governos progressistas é conservadora nisso. As tão faladas novas direitas são mais pragmáticas e estão sendo mais habilidosas no diálogo com as “novas gerações”. É a tormenta perfeita.
IHU On-Line – Em que medida a Coreia do Sul pode ser vista como um modelo, em termos político-econômicos, para América do Sul? Como é possível traçar um paralelo entre duas realidades tão particulares como oriente e ocidente?
Bernardo Gutiérrez – Difícil comparar qualquer país, difícil replicar modelos. “Oriente” e “ocidente” são marcos construídos, marcos que a Europa desenhou no grande pacote da modernidade, que nem são exatamente antagonistas, nem complementários. Um dos pilares do ocidente, a Grécia clássica, era muito oriental, de forte influência egípcio-persa. A Grécia teve mais diálogo histórico com o oriente do que com o ocidente, seja com a igreja ortodoxa ou com a diáspora grega do oriente próximo. Foram os árabes que introduziram a filosofia grega na Europa. O oriente também tem uma mistura e hibridação com o ocidente. Até o Japão não se encaixa 100% no clichê oriente. É antropofágico, sincrético, mas não aceita o marco ocidente. O formato reality show e a indústria do videogame global são japoneses. Ou seja, o Japão é uma parte do sistema-mundo teorizado por Immanuel Wallerstein, não necessariamente subalterna. Então, aceitamos a definição de oriente que o ocidente fez? A Coreia do Sul é oriente? E o Brasil é 100% ocidente, ou é um pós-ocidente, com uma mistura afro e indígena?
A Coreia do Sul teve um investimento forte em educação, algo que não é oriental e sim uma prática de bom governo. Nisso pode ser uma referência. A introdução das tecnologias digitais foi importante, ainda que sem o marco ético da “privacidade”. Tenho minhas dúvidas sobre o capitalismo made in Coreia. Seul é um dos modelos de “cidade colaborativa”, mas acho que é marketing, uma nova cara do capitalismo. A questão dos commons, do bem comum, é fraca nos países asiáticos, que compraram o neoliberalismo com entusiasmo. Temos que ter cuidado quando falamos de Norte e Sul, oriente e ocidente.
Estamos mais numa nova fase global, de cidadanias interconectadas, de subjetividades em rede, de policulturalismo movimentista, de interculturalismo trans-tudo, de descolonialidade emergente, que está disputando o sentido do mundo. O story telling de Hollywood, esse ocidente inexato e superficial for export, está no início de sua crise.
IHU On-Line – Com base no atual momento de governos progressistas da América Latina, é possível afirmar que a esquerda latina está no fim de ciclo? E o que se espera em termos de novo ciclo?
Bernardo Gutiérrez – Não é o fim do ciclo abrupto como a mídia e as direitas querem. É mais complexo. Não podemos falar de fim de ciclo de “governos progressistas” e de uma nova fase neoliberal. Por um lado, a maioria de “governos progressistas” tem abraçado o capitalismo, como horizonte e ferramenta transformadora. A inclusão pelo consumo, na maioria dos casos, não chegou da mão da inclusão pelos direitos. O nacional-desenvolvimentismo, baseado em grandes infraestruturas e na exportação de commodities, foi o modelo.
Ao mesmo tempo, a famosa nova classe média do lulismo é mais working poor que classe média, falando sociologicamente. É uma classe baixa que não atingiu direitos e que desfrutou de algumas cotas de consumo, graças ao endividamento privado ou programas sociais do Estado. Por isso, falar de “governos progressistas ou de esquerda” é inexato. Foram conservadores em questões morais e capitalistas na essência, com programas de inclusão social importantes. A exceção é a Venezuela.
Mas temos outro lado: o legado dos “governos progressistas” é visível, inegável. Seria injusto falar que esses governos faliram, deram em nada, foram um fracasso. A inclusão social de milhões de pessoas é fato. Abrir a participação em vários níveis da política, do orçamento participativo a processos legislativos, também é destacável. Tem um legado quase intocável em algumas questões. Macri não vai ter como desfazer a “memória histórica” da Argentina. Ninguém no Brasil vai eliminar o programa Bolsa Família. Até as cotas nas universidades têm um consenso elevado.
Novas conquistas
Hoje se fala muito do final do ciclo da esquerda, juntando elementos assimétricos como a perda de força do Maduro no congresso venezuelano, o referendo que Evo Morales perdeu na Bolívia ou a chegada de Macri na Argentina. Mas não se fala que essas vitórias da oposição são incompletas. Ao mesmo tempo, há várias viradas progressistas em alguns cantos da América Latina.
No Chile, a luta dos estudantes conseguiu a educação superior gratuita e a legalização do aborto. O surgimento do partido Revolución Democrática a partir dos estudantes é novidade.
Na Colômbia, Alianza Verde ganhou o Estado de Nariño, com uma proposta de bem comum, participação e sustentabilidade.
No Paraguai, do movimento dos Indignados nasceu o Despertar Ciudadano, que disputa o poder nas cidades e tem valores progressistas.
No México apareceram vários fenômenos na política representativa, como Wikipolítica, que já elegeu seu primeiro deputado, ou o Movimiento Ciudadano, que já governa 80 prefeituras. Andrés López-Obrador, eterno candidato da esquerda, lidera todas as pesquisas com seu novo partido, MORENA.
O Uruguai continua o caminho progressista.
Tudo é menos linear e dicotômico do que parece. As velhas esquerdas usam o argumento do “golpe” para tentar salvar o que resta delas e as novas direitas se escondem em campanhas de marketing. Não está fácil para ninguém. Além disso, esses novos fenômenos, wikipolíticos e de rede, não podem ser explicados só desde a esquerda.
IHU On-Line – Como avalia o governo de Rafael Correa no Equador e qual a novidade que ele traz em termos de desenvolvimentismo? Quais as semelhanças e distinções dos demais governos – que se dizem – progressistas da América Latina, em especial do Brasil?
Bernardo Gutiérrez – O governo de Rafael Correa foi e é várias coisas simultaneamente. Ao longo do tempo, teve evoluções, sempre com tensões contraditórias. O grande lance do governo Correa é ter apostado pelo “Buen Vivir” como visão de mundo, de governo. As práticas e cosmovisões quíchuas foram transformadas em motor narrativo das políticas públicas. Correa conseguiu criar esse sentido, essa narrativa, que disputa a realidade com o capitalismo. A negociação da dívida, dentro desse marco, fez mais sentido ainda. Ou seja, combateu o consenso capitalista planetário com uma visão própria da vida, isto é, foi mais um giro decolonial que giro à esquerda.
Além do “Buen Vivir”, também foram criados outros marcos e espaços narrativos, como a Economia Social do Conhecimento, que transforma quase tudo, da economia à agricultura, em conhecimento, sob a hipótese de que compartilhar conhecimento é enriquecedor. A Revolución Ciudadana, o processo social que derrubou o presidente Lucio Gutiérrez, também virou eixo simbólico do governo.
Então, esse ecossistema de marcos, narrativas, simbologias, visões de mundo, é o grande legado de Correa. Talvez o projeto mais interessante do Governo Correa seja o “Buen Conocer”/FLOK Society, não porque eu tenha participado intensamente, senão porque criou um roteiro para gerar políticas públicas a partir do conhecimento livre, comum e aberto. Também, porque foi além do “Buen Vivir”, criou o imaginário do “Buen Conocer” e pontes entre academia e movimentos, entre governo e sociedade, entre hackers do mundo e povos indígenas, entre o sul global e o norte indignado.
Porém, no Governo Correa teve excesso de marketing, quando o “Buen Vivir” passou a ser uma construção marqueteira e entrou em conflito com os povos originários do “Buen Vivir”. De qualquer jeito, essas inovações narrativas de visão de mundo que a Bolívia também trabalha desde os Ayllus Rojos, que misturavam marxismo e indigenismo, são fantásticas.
IHU On-Line – De que forma é possível compreender a relação do Governo Correa com os povos indígenas? Em que medida essa relação expõe uma opção pelo “desenvolvimentismo desenfreado”?
Bernardo Gutiérrez – Havia um entendimento inicial de Correa com os povos indígenas, porque, sem eles, não teria chegado ao poder. Mas Correa abandonou a trilha indigenista e foi se afastando das práticas indígenas do “Buen Vivir”. Gustavo Acosta denuncia há muitos anos essa contradição e o “desenvolvimentismo”. Acho que foi um erro estratégico fazer do extrativismo do parque Nacional Yasuni uma bandeira. Mais ainda, fechar uma parceria com a China de compra de dívida em troca de exportação de commodities.
Ainda assim, o Equador tentou criar um mecanismo compensatório: o mundo pagava e o Equador preservava o Yasuni. Não foi possível. O jeito um pouco autoritário do presidente complicou tudo.
Acho que não podemos falar que o governo Correa é autoritário, antidemocrático, mas o jeito pessoal de Correa, aquele macho alfa personalista, é um problema, porque isso acaba em política de repressão, com blogueiros ou indígenas na mira do Estado.
A relação de Correa com os povos indígenas está tensa. O bonito é que lá os movimentos têm autonomia e saem às ruas sem conflitos emocionais. A chantagem do governismo não está funcionando no Equador e os movimentos estão nas ruas. Tem protestos mais de direita tentando capturar o sentimento das ruas, mas os movimentos tradicionais do Equador não têm tanto medo como os brasileiros, que evitam “bater” no PT.
IHU On-Line – Quais os limites do pensamento desenvolvimentista quando se propõe instituir a “economia do bem comum”? O que podemos apreender desse movimento acerca da experiência do governo equatoriano?
Bernardo Gutiérrez – O pensamento desenvolvimentista é mais prática do que pensamento. Nem chega a ser ideologia. Acho que é práxis da real politik de alguns países. O primeiro limite é o próprio planeta Terra, que está morrendo. O desenvolvimentismo é totalmente contrário ao bem comum, aos “commons” do inglês, ao “procomún” da língua espanhola, ao comum do português. O desenvolvimentismo cria políticas públicas top down, disponibiliza recursos públicos no setor privado, sem nenhum tipo de controle, transparência ou participação.
No Brasil, o cenário é mais complexo ainda, pois o poder público, com empréstimos do BNDES, apostou pela fusão de empresas e pela construção de gigantes multinacionais brasileiras. No Brasil, o desenvolvimentismo é também subimperialismo. Se o desenvolvimentismo abrisse a porta a pequenas cooperativas e gestões comunitárias, poderia ter algum sentido.
Tem um ponto crucial para essa nova era latino-americana: a ecologia. Os governos desenvolvimentistas das esquerdas latino-americanas tiveram uma nula sensibilidade ambiental. O Brasil foi um dos piores. Não é possível que o neoliberalismo global defenda nisso exatamente o mesmo que o bloco progressista latino-americano. Joan Martinez Alier fez um texto inspirador: “A aversão e o desprezo antiecologista de Rafael Correa, Alvaro García Linera, Cristina Kirchner, dos presidentes Lula e Dilma Rousseff, cobra agora um preço alto que beneficia o neoliberalismo. Por isso, de uma vez, é urgente que a esquerda latino-americana se torne ecologista”.
IHU On-Line – Como compreender o fato de governos progressistas da América Latina, como os casos de Equador e Brasil, terem se distanciado de movimentos sociais, a ponto de que se mostram inábeis para ouvir e discutir com esses movimentos?
Bernardo Gutiérrez – Em 19 de março de 2015 teve o primeiro grande protesto contra o governo de Correa, convocado pela Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador – CONAIE. Eu estava em Quito esse dia e vi pintadas nas paredes frases como “Fora China”. Nas ruas tinha uma mistura interessante de movimentos indígenas, ecologistas, feministas, ativistas LGBT e esse sujeito político indignado de classe média, que é novo, diferente. A versão da mídia governista foi a de que quem foi às ruas era “aniñado”, ou seja, “coxinha”. Um absurdo.
Ao longo das jornadas de junho do Brasil, que foram complexas, não lineares e não dicotômicas, o governo Dilma e a grande maioria do PT criminalizaram os “vândalos”. Depois, falaram que quem estava nas ruas era “coxinha” e “fascista”. As esquerdas organizadas falavam que só elas tinham uma história militante, que o jeito delas desfilarem pelas ruas era melhor, mais estruturado, cheio de bandeiras e simbologia vermelha. Faltaram com o respeito a milhões de manifestantes. Ridicularizar os “desorganizados” e essa forma líquida de protesto é burrice. Não entenderam nada da era do “multipertencimento”, dos novos espaços agregadores. Essa desastrosa gestão governista das ruas e das jornadas de junho entregou, na mão da direita, milhões de indignados.
O estudo feito por Pablo Ortellado, Lucia Nader e Esther Solano revelou que os supostos manifestantes “coxinhas” da Paulista defendem muitas pautas progressistas. Os convocantes podem ser de direita ou neoliberais, mas os manifestantes têm vida própria e expulsaram Aécio Neves do protesto. A neodireita não controla mais essa multidão verde-amarela. Porém, a mensagem que a mídia, os convocantes, a oposição e próprio governo construíram é que todos eles são contra o governo.
Junho foi uma explosão de movimentos, coletivos, imaginários, práticas políticas, jeitos de ocupar a rua, subjetividades em rede. Nasceu um novo ecossistema social, um sistema rede de redes e ruas. O imaginário da “vida sem catracas” está vivo, o Ocupa Escola prova isso. Só que nem governistas, nem antigovernistas pró-impeachment entenderam bem.
É curioso que os principais movimentos de junho estejam, nesse momento, calados. Nem apoiam os protestos pró-impeachment, nem defendem mais o governo. Defender a democracia é bonito, mas com chantagem emocional governista no meio, tira o tesão.
IHU On-Line – Como vem acompanhando a crise política do governo brasileiro?
Bernardo Gutiérrez – Acompanho com bastante preocupação. Em primeiro lugar, temos uma grande crise do PT e do governo, que o PT criou. Para mim, o ponto mais complicado é o divórcio entre o “relato vermelho” e as políticas públicas do PT. É insultante. Há uns meses publiquei um texto, “O PT no labirinto neoliberal”, destacando essa brecha entre o “marketing de esquerda” e a política do governo do PT, que sofreu uma guinada à direita gigantesca.
A crise do PT começou a ser visível durante as jornadas de junho. O governo Dilma cometeu um erro grave: fingir que escutava as ruas e fazer o contrário. Tentou sequestrar junho, cooptou movimentos, ameaçou dissidentes, desqualificou os novos “vândalos”, aprovou a Lei Antiterrorista, fez chantagem emocional, fechou acordo com os autoproclamados líderes das ruas. A campanha eleitoral de 2014, desenhada por João Santana sobre o binarismo, foi o início do fim.
Um segundo turno entre Marina e Dilma teria mudado tudo. Duas mulheres, com história de lutas, teriam tido que debater sobre propostas, visões de mundo, medidas concretas. E o PSDB seria um cadáver. Só que não. A esquerda brasileira em seu conjunto, especialmente o PT, é a menos antropofágica do mundo. Quadradona, dogmática. Infelizmente, virou isso.
Outro dos grandes erros históricos do PT foi a aposta no marketing político. É possível que sem Duda Mendonça, Lula não teria ganhado as eleições de 2002. Mas foi um erro entregar todo o potencial narrativo na mão de Duda e depois de Santana: a ficção acabou substituindo a realidade. Nesses últimos anos, quase tudo o que o governo fez esteve mais orientado à aparência do que à comunicação real.
A crise do governo tem a ver com o que o Marcos Nobre chama de peemedebismo, essa aliança que fabrica um único consenso de governo baseado no ruralismo, na construção de grandes infraestruturas desnecessárias. O peemedebismo é a negação dos valores da esquerda. É muito triste ver o espaço que o PT abriu para essa bancada BBB, que em outros países seria considerada uma organização criminosa.
O peemedebismo é um cínico #TamosJuntos sem ideologias, só interesses. Interesses do grande capital, das empreiteiras. Estamos pagando ainda essas alianças territoriais do PT, que entregou muitos recursos e poder ao PMDB em troca de seu apoio em Brasília. O peemedebismo saiu do controle e acabou colocando Eduardo Cunha como presidente do Congresso. E o PT ficou meses na paralisia, defendendo Cunha. De novo, optou pela dissonância cognitiva de incentivar o grito #ForaCunha e abraçar o peemedebismo dentro do Congresso.
IHU On-Line – Que análise faz sobre os últimos acontecimentos da operação Lava Jato?
Bernardo Gutiérrez – A Lava Jato é uma operação que deveria ser o orgulho de todos os brasileiros. Especialmente dos petistas, porque é verdade que o lulismo melhorou a independência da Justiça e da Polícia Federal. Antes de Lula, a corrupção quase nunca era punida. Mas o que estamos vendo não é uma mera apuração de casos de corrupção, é outra coisa. Por um lado, enxergamos a assustadora dimensão do “esquema” de corrupção. Possivelmente, todos os ex-presidentes do país estarão sujos para sempre. Até lá, tudo bem se a Lava Jato fosse fruto de uma Justiça independente.
Acontece que não, que o juiz Sérgio Moro ultrapassou os limites, cometeu ilegalidades, dirigiu uma campanha jurídico-midiática, com aromas de novela, totalmente partidária, perigosa para a democracia.
Boaventura de Sousa Santos fala de um novo tipo de golpe, de manobras para derrubar um governo. Não compro a tese do “golpe”, pois tem várias falácias, mas concordo com Boaventura. Ao mesmo tempo, o governo é praticamente indefensável. Então, é um momento muito delicado, no qual tanto o governismo como a tão criticada mídia golpista são corresponsáveis.
IHU On-Line – E como analisa a cobertura da grande mídia brasileira?
Bernardo Gutiérrez – Sou jornalista e tive a sorte de trabalhar muitos anos dentro de jornais, como enviado especial, correspondente, editor, consultor, professor. É a melhor profissão do mundo. Você tem um passaporte para o céu e para o inferno. Dá para falar com os dois lados. Dá para manter distância, mas também estar dentro dos processos. A grande mídia brasileira é bastante vergonhosa, é fraca, mas o pior é que se sente acima da lei. Não tenta retratar a realidade, tenta mudá-la. Marcar o ritmo político é parte do jogo político-jornalístico. Quando você faz isso a serviço de seus interesses e das elites, é criminoso.
Mas também me preocupa muito que a maioria da suposta “mídia livre” brasileira não seja livre: é parcial; não faz jornalismo, faz propaganda. Em lugar de mídia independente existe um ecossistema de blogueiros progressistas, mídia livre fake, que são papagaios piratas do governismo. É muito difícil você achar um veículo independente potente, que seja crítico contra o grande capital e contra o governo ao mesmo tempo. Existem algumas exceções, sem dúvida. Gosto da Agência Pública, do Nexo Jornal, da Democratize, do CMI e de algumas iniciativas de mídia livre como Carranca, Rio Na Rua ou Coletivo Mariachi, filhos de junho.
IHU On-Line – O que é possível inferir sobre a esquerda da América Latina desde a experiência do PT no Brasil?
Bernardo Gutiérrez – Tem um legado positivo, especialmente do PT inicial, aquele partido-movimento. A geopolítica do sul tecida por Lula e o marco da inclusão social são inspiradores. Nesse momento, a esquerda latino-americana deveria estudar a decadência e os erros cometidos pelo PT.
Em primeiro lugar, evitar o rumo neodesenvolvimentista do Brasil. Também, ter claros os limites da inclusão pelo consumo sem direitos. Como o uruguaio Raúl Zibechi diz, o consumismo fabrica mentalidades capitalistas e conservadoras. Ao mesmo tempo, seria bom evitar a cegueira do PT durante as jornadas de junho, que enquadrou as ruas como herança das lutas históricas ou como revolta “coxinha”. Procurar lideranças nas ruas tomadas pela multitude auto-organizada é ridículo.
Outro dos aprendizados seria sobre a identidade fechada do vermelho. Tem que abrir a identidade e se adaptar à era das redes e do multipertencimento. Mais ainda: virar à direita é um erro, pois para as elites o PT será sempre um golpe comunista. As esquerdas latino-americanas deveriam construir a narrativa para a queda de alguns governos progressistas. A oposição neoliberal narrará a derrota associando a esquerda à corrupção. Não importa que o PT não tenha tocado em 12 anos o aborto ou a reforma agrária. A oposição venderá sua queda como prova da inviabilidade do progressismo. O antropólogo Salvador Schavelzon define o governismo como “um tipo de argumentação cínica incapaz de reconhecer críticas que associa qualquer dissidência com a direita e neoliberalismo”. O continente deveria evitar a existência do governismo. O oficialismo clássico é mais razoável.
IHU On-Line – Em que momento histórico está o ativismo e a ação de movimentos sociais na América Latina?
Bernardo Gutiérrez – É difícil considerar a América Latina um território homogêneo, interconectado. Convivem realidades, processos e tempos distintos. O comportamento dos movimentos populares é diferente no México ou na Colômbia ou no bloco progressista em geral. De fato, os ecossistemas sociais desses dois países são os mais empolgantes. O fato de não ter uma relação com o governo, com o Estado, facilita a transversalidade, a mistura de todas as lutas.
No México, a explosão do movimento #YoSoy132 no ano 2012, movimento surgido nas redes sociais digitais, significou uma evolução do relato e métodos zapatistas, mas sem ruptura total. A criação desse imaginário novo do #YoSoy132 foi extremamente importante. Depois do desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, a rede criada do #YoSoy132 foi vital para conectar os movimentos populares clássicos, os movimentos estudantis, o zapatismo e as novas gerações.
Na Colômbia, a Minga Indígena de 2008 deu em uma mistura linda de movimentos rurais, indígenas, estudantes, jovens urbanos, ou seja, lá onde não há governos progressistas, o ecossistema dos movimentos está mais vivo, o “velho” convive com o “novo”. Nos países do bloco progressista, muitos dos movimentos foram cooptados pelo Estado, perderam energia. No geral, ficaram estagnados em estéticas, relatos e mitos do passado e dialogam mal com o novo. Tem de tudo e há casos concretos de convívio.
Vimos essa universidade de rua intergeracional no Parque Augusta de São Paulo ou em alguns atos do MTST. Acho que a América Central, especialmente Guatemala e Honduras, está vivendo momentos importantes. Os movimentos populares se apropriaram da pauta “anticorrupção”, historicamente na mão da direita. É muito importante. Tomara que no Brasil também aconteça o mesmo, pois nada justifica a corrupção. Desqualificar os movimentos anticorrupção como “coxinhas” é danoso à democracia.
IHU On-Line – O que o ativismo em rede, a tecnopolítica e a subjetividade em rede têm revelado?
Bernardo Gutiérrez – Por um lado, que existe um novo padrão de mobilização baseado em pautas concretas, não baseado nos militantes clássicos. Nessas pautas acontecem fortes disrupções simbólicas e a geração de novos espaços agregadores. A Aldeia Maracanã do Rio de Janeiro serve de exemplo.
Por outro lado, vemos que há campos de luta comuns, renovados pelo diálogo em rede. Na América Latina, os eixos mais potentes são:
1) um novo tipo de feminismo em rede, transversal, como #NiUnaMenos, na Argentina, e a Marcha das Vadias;
2) as liberdades digitais, como o Marco Civil no Brasil, lutas contra Internet.org etc;
3) defesa dos bens comuns urbanos, como #tomaelbypass no Peru, #OcupeEstelita ou Parque Augusta no Brasil;
4) luta por outro tipo de democracia, com lutas, coletivos, protestos, iniciativas para melhorar a participação, a transparência.
Tecnopolítica
Depois temos o grande padrão do mundo, a tecnopolítica das multidões conectadas. Contrariando a versão governista, as revoltas interconectadas globais foram muito influentes na região. Em primeiro lugar, no simbólico: os lemas de Democracia Real Ya da Espanha e o imaginário dos Indignados/Occupy estão bem presentes.
Em segundo lugar, os métodos e formatos das revoltas globais foram incorporados pelos ativistas locais: acampados, assembleias no espaço público, métodos de articulação digital, uso de ferramentas etc. Os dois casos mais importantes de revoltas em rede foram o #YoSoy132 mexicano de 2012 e as jornadas de junho do Brasil. Tendo grandes diferenças, especialmente na evolução, ambos os processos significaram a chegada de outro tipo de protesto não linear, mais molecular, mais aberto, baseado na auto-organização, na autoconvocação e nas identidades abertas surgidas a partir de explosões emocionais.
A identidade dos “vândalos”, que desmantela com humor a desqualificação da grande mídia, é fascinante. Na maioria dos processos tecnopolíticos da região, observamos um novo tipo de “movimento rede” que evolui ao longo do tempo, que muda de forma e muda até de nome. O estudo Tecnopolítica: la potencia de la multitud conectada, sobre o 15M espanhol, define o fenômeno como “liderança temporária distribuída”. O movimento rede “se transforma de maneira dinâmica” ao longo do tempo.
O transnacionalismo também é outra característica. É impressionante a conexão das lutas do Gezi Park da Turquia e das Jornadas de junho. O México foi para um lado positivo: renovação de movimentos, diálogo intergeracional. O caso de Ayotzinapa criou, além disso, um movimento de solidariedade continental.
Por último, destaco uma das principais conclusões da minha pesquisa para OXFAM: o DNA ancestral colaborativo latino-americano e algumas cosmovisões como o “Buen Vivir” convivem com as dinâmicas tecnopolíticas, a cultura de rede e o hacktivismo. Mecanismos orientados ao bem comum como a minga kichua, o tequio náhuatl mexicano ou o ayni aymara da Bolívia renascem na era da rede. Aí eu enxergo o grande potencial narrativo e organizacional da América Latina.
IHU On-Line – Vivemos um momento de crise da grande narrativa? As narrativas coletivas surgem como alternativa? Como compreendê-las?
Bernardo Gutiérrez – As narrativas do ocidente estão em decadência há décadas, só que morrem matando. A “modernidade” e a “pós-modernidade” eurocêntricas continuam legitimando o Estado moderno e todos os seus marcos, seja a “democracia liberal”, a “socialdemocracia” ou conceitos como “Terceiro Mundo”. Deveríamos forçar a queda definitiva de ditos marcos e ficções esgotadas.
Porém, com exceção do Equador e da Bolívia, a maioria dos governos progressistas criou narrativas dicotômicas usando marcos ocidentais. A cosmopolítica de Davi Kopenawa, o zapatismo, o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro e o Bem Viver, em diálogo com a tecnopolítica, deveriam engatar os seus relatos numa nova visão e sensibilidade de mundo. Ainda assim, o tabuleiro esquerda X direita não vai desaparecer.
Esquerda X Direita
O tabuleiro esquerda X direita tem três níveis: valores, simbologias e estruturas. As estruturas da esquerda foram sempre muito rígidas, tanto em hierarquias como em simbologias e ritos. Além disso, o pertencimento às esquerdas é “tudo ou nada”, é ferro, é sólido. Não tem possibilidades intermédias.
Para muitos jovens, ser vermelho é pouco empolgante, é passado. Ser verde e amarelo pega mais leve. Gerar espaços e símbolos agregadores é uma habilidade da tal nova direita. Groucho Marx, falando aquilo de “eu tenho esses princípios, mas se vocês não gostarem, tenho outros”, retrata bem essa direita camaleônica que muda de símbolos, de identidade, com facilidade. Para eles, o importante são os interesses econômicos, os privilégios de classe, a metalinguagem mítica que cria o marco geral, esse neoliberalismo descrito como lei natural, esse “progresso” e esse “crescimento” da economia inquestionáveis.
Tanto as estruturas como as simbologias de esquerda estão em convulsão, incluindo marcos, ritos, metáforas. Tudo está em xeque. Mas os valores do “progressismo” em questões como inclusão social, tolerância, direitos civis, estão vivos. O Linguista George Lakoff fez uma análise fantástica no livro Não pense em um elefante, sobre os “marcos”, as visões de mundo da direita conservadora.
No último meio século criaram um brutal ecossistema de think tanks para desenhar os “marcos” do mundo: baixar impostos é “aliviar as empresas”, privatizar significa ser “eficiente”. Lakoff alerta sobre a urgência de criar novos marcos para o progressismo.
O caminho simbólico rosa choque do ativista paulistano Paulinho Fluxus é inspirador. O que está acontecendo na Espanha nesse campo simbólico é nas estruturas e é de especial importância. Um dos devires do 15M espanhol, o chamado municipalismo, conquistou as principais cidades do país com “confluências”, um novo tipo de frentes populares. Brinda um protótipo organizacional e narrativo para o novo milênio. Por outro lado, o partido Podemos abre novos caminhos simbólicos: vai além do vermelho, reinventa o roxo, constrói discursos agregadores. Legitimam propostas da esquerda radical como “política do senso comum”. Esse novo senso comum do Podemos funciona como o Bem Viver na Bolívia e no Equador. Cria uma nova lógica que opera sobre a realidade, modificando os marcos e as narrativas.
IHU On-Line – Como está a esquerda brasileira?
Bernardo Gutiérrez – Roland Barthes, no seu livro Mitologias, apontava certa incapacidade da esquerda na criação dos mitos. Tudo bem que o livro é dos anos 50. Depois vieram o maio de 68, Che Guevara, o altermundismo, Lula, a onda occupy. Barthes entendia que a direita transforma sua ideologia em metalinguagem: “A ideologia burguesa investe nos seus mitos seus interesses essenciais: o universalismo, a rejeição de explicação, uma hierarquia inalterável de mundo”.
Até a crise de 2008, o neoliberalismo ganhava a batalha da construção de marcos. Margaret Thatcher, “conquistando as mentes e os corações” dos operários britânicos perdeu o governo, mas ganhou a guerra cultural. Seu grande sucesso foi o novo laborismo de Toni Blair, descaradamente neoliberal. O sucesso do Partido Popular da Espanha foi criar um imaginário do pequeno “empreendedor”: conseguiram que operários pobres votassem neles. O grande sucesso das políticas tucanas foi o primeiro mandato de Dilma. Os mais pobres foram incluídos no mercado, enquanto as elites enriquecem como nunca.
Lula criou um marco potente: a inclusão, o Programa Fome Zero, a ideia de que “um país rico é um país sem pobreza”. Porém, o lulismo, especialmente o governo Dilma, usou a maioria dos marcos prévios, os mitos do capitalismo ocidental. Não questionando a ideia de “progresso” positivista ou o crescimento como sinônimo de bem-estar, e chegou nesse beco sem saída: uma parte da nova classe C abandonou alguns pertencimentos prévios. No shopping, comprando ou de rolezinho, querem se sentir parte disso. Sua nova identidade é outra, o consumismo substituiu parte da ideologia combativa. E como diz Lakoff, muita gente vota sobre identidades, ainda que isso seja ruim para seus próprios interesses.
Lulismo
O lulismo não desenhou um novo marco, não achou um “bem viver” próprio, um motor narrativo para outras políticas públicas. O Brasil poderia ter apostado no “Teko Porã”, o “bem viver” dos guaranis, ou nas visões coletivas quilombolas. Poderia ter inventado um marco brasileiro próprio, um hibridismo, um mundo além do capitalismo e do ocidente.
Mas isso não aconteceu. Veja o protesto pró-democracia do dia 18 de março, na Av. Paulista: Lula falava de “eles” que “compram roupas” em Miami e a “gente que compra na 25 de março”. É um tiro no pé. Uma parte do povão que apoiou Lula entrou no consumo e tenta comprar no shopping. Boa parte dos manifestantes da Av. Paulista compõe um novo sujeito político heterogêneo, esteticamente diverso.
O novo sujeito político abraça identidades múltiplas, entende de outro jeito as ideologias, baseia sua ética em práticas tangíveis, em formas de vida. A estratégia do governismo de “eles” e “a gente” funciona em momentos tensos, mas não no meio prazo.
Começa ser urgente desmitificar o neoliberalismo. Para fazer inofensivos seus mitos, devemos alterar os elementos que os fazem funcionar. Introduzir novos símbolos, ocupar significantes, esvaziar significados compartilhados. Desviá-los. Para que a nova ordem seja um marco indiscutível, temos que achar a meta linguagem da mudança, os símbolos de um mundo no qual as coisas signifiquem por si mesmas. Urge ir além da lógica mitológica da esquerda. O novo mito deveria ser o tom despreocupado da multidão, a prova poética do desabamento do neoliberalismo.
IHU On-Line – Que caminho político seria bom para o Brasil?
Bernardo Gutiérrez – O marco do Brasil Maior, do Brasil potência, foi um dos grandes erros do lulismo. É evidente que o sonho do Brasil Maior é anterior. Como Oswald de Andrade escreveu, o Brasil “está perdido no mapa-múndi do Brasil”. O tamanho importa, pesa. É estranho observar como o Brasil oscila entre o vira-latismo e o subimperialismo. O Brasil Maior tem o desejo de grandeza, o sentimento de superioridade com a América Latina, a vontade de ter poltrona no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil Maior ama ver o capital brasileiro no mundo e acha bonita a conquista cognitiva da África lusófona. Primeiro, chegam as novelas made in Globo. Depois, o capitalismo da nova casa grande.
Por isso, em lugar de se afastar da América Latina na raiz antropológica, o Brasil deveria ter entrado nos marcos e cosmovisões tecidas pela Bolívia, pelo Equador ou pelo México. Os devires simbólicos da mestiçagem do “Buen Vivir” e a ética hacker, do perspectivismo ameríndio brasileiro e a cultura viva comunitária, do zapatismo e o hacktivismo, se aproximam à transmodernidade do argentino Enrique Dussel: “um além transcendente à modernidade ocidental (…) Transmodernidade polifacética, híbrida, pós-colonial, pluralista, tolerante, além da democracia liberal e do Estado moderno europeu”. O Brasil deveria apostar por ser o Brasil Menor, ou seja, a potência da transmodernidade.
Nesse momento convulso parece que os mitos fundadores do Brasil estão em entredito, particularmente o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. Os mitos não são verdades. Mas são ferramentas para preservar horizontes coletivos. O Brasil não deveria dar por mortos seus mitos fundacionais, que são inexatos, claro. Deveria reivindicar o homem cordial, a miscigenação de Gilberto Freire, o “jeito do povo feliz” de Darcy Ribeiro, a capacidade carnavalesca de alterar temporariamente hierarquias explicada por Roberto da Matta, a gambiarra como processo inovador. Mas o Brasil tem que ir além, tem que parar de mitificar sua matriz ocidental, tem que desfazer os marcos eurocêntricos e aprofundar seu caminho descolonial, que é sempre mais complexo que o diálogo norte-sul.
A “raça cósmica” do mexicano José Vasconcelos, anterior à teoria da miscigenação de Gilberto Freire, serve de marco para o continente todo. O Equador é tão miscigenado e mestiço como o Brasil. Adotou o Bem Viver indígena simbolicamente. Mas entraria também dentro de um marco do “hibridismo transmoderno” e descolonial. A América Latina, com esse Brasil Menor, poderia marcar de novo o ritmo do mundo. Mas tem que parar de aceitar os marcos criados pelo norte. Mas cuidado, o descolonial não é nem anticolonialismo nem anti-imperialismo tosco. A teoria da multidão de Antonio Negri ou o rizoma de Guattari nunca poderiam ser considerados colonialismo, por exemplo. Ser transmoderno é outra coisa.
IHU On-Line – Como enxerga a nova ordem mundial de países a partir de supraorganizações, movimentos sociais, terceiro setor, empresas?
Bernardo Gutiérrez – Depois da conferência de Bandung de 1955, na Indonésia, achou-se um caminho para esse Movimento dos Países Não Alinhados – MNA. O Estado-nação era a principal estrutura política. Durante o altermundismo, era lógico incluir o terceiro setor para costurar o Fórum Social Mundial.
Hoje, a realidade planetária é bem diferente. Gosto do conceito de polifonia do russo Mikhail Bakhtin: “todo discurso é formado por diversos discursos”. Vivemos uma fase de polifonia extrema e transnacional, uma polifonia que coloca em interação elementos e essências diferentes, como água dialogando com gelo, simbologias dispersas criadas em épocas distintas.
Yochai Benkler no livro A riqueza das redes argumentou que, entre a introdução de uma novidade tecnológica e o início de uma nova era, passam 25 anos. A imprensa de Gutenberg demorou 25 anos em acabar com o monopólio do conhecimento da igreja. O modelo dos mass media se consolidou 25 anos depois da invenção do rádio. No ano 1990, Tim Berners-Lee criou a linguagem HTML e a WEB popularizou a Internet.
O ciclo de revoltas aberto pela Primavera Árabe, continuado pelo 15M – Indignados Espanha, Occupy, #YoSoy132 México, jornadas de Junho, criou uma forte disrupção simbólica e organizacional. Visibilizou novos sujeitos políticos, uma multidão transnacional mais difícil de definir que o terceiro setor. Ao mesmo tempo, esse relato coral-global fez evidente como uma elite pós-nacional, o 1%, despedaça o mundo dos 99%.
O coletivo italiano Wu Ming antecipou essa visão há quase 20 anos: “Onde procurar a estrela polar ou o cruzeiro do Sul quando a gente se enfrenta à coexistência de uma elite muito rica de um país asiático e de chineses sem documentos reduzidos à escravidão numa loja de alimentação do nordeste italiano?”
O mundo era mais simples na era dos Países Não Alinhados ou no Fórum Social Mundial. Hoje, o Sul Global deve ser um Sul Global expandido que inclua também o precariado e os novos sujeitos políticos do norte. Adoro o conceito de “epistemologias do Sul” de Boaventura de Sousa Santos, o “pensamento fronteiriço” de Walter Mignolo e a transmodernidade de Enrique Dussel.
Mas temos que ir além do pensamento descolonial e criar epistemologias do Sul expandido, que inclua o norte, os novos cidadãos das transfronteiras, os know-mads, nômades do conhecimento que enriquecem os territórios com olhares e visões. Reinventar o tabuleiro latino-americano passa por desconstruir o ocidente. Uma boa parte dos brasileiros se considera ocidental.
O Brasil pós-ocidental, miscigenado, híbrido, tupinambá e africano, transmoderno e crioulo, é infinitamente mais interessante. Aceitar ser “emergente” e BRICs é um bluff: você ganha legitimidade global, mas usando as regras do jogo e o tabuleiro desenhado pelo inimigo. O quadro a “América Invertida” do Joaquim Torres era uma inversão que não alterou o marco. Já no século XVI o Guaman Poma tinha criado o mapa “Orbis Universalis Terrarum”, com a lógica espacial de Tawantinsuyu, o império inca. O Brasil e a América Latina devem deslocar, não inverter sem alterar o marco.
Um sul global expandido, mais metáfora que território, que inclua uma polifonia de atores, processos e sujeitos políticos, um sul global dos “desorganizados”, da cosmovisão dos cryptopunks, da cosmopolítica Yanomami, das rotas de fuga das filtrações do Wikileaks e Edward Snowden. Uma polifonia que ultrapassa os estados-nação sem destruí-los, que começa a se articular em movimentos de nova representatividade política, em novos partidos-movimentos que hackeiam a democracia ocidental para construir uma nova ordem.