Os profundos temores da comunidade científica nacional e internacional, sobre os danos à natureza pela construção de um canal interoceânico na Nicarágua, ressurgiram com força ao ser divulgado um estudo que revela graves ameaças ambientais que a gigantesca obra representa. O informe Canal da Nicarágua. Estudo de Impacto Ambiental e Social. Resumo Executivo, foi feito pela empresa britânica Environmental Resources Management (ERM), a pedido da Hong Kong Nicarágua Canal Development (HKDN Group), a concessionária chinesa responsável pelo projeto.
A reportagem é de José Adán Silva, publicada por Envolverde, 03-11-2015.
O resumo executivo contém 113 páginas e compreende uma pesquisa cujo conteúdo e volume são desconhecidos porque nem o governo, nem a ERM e a HKND divulgaram integralmente o Estudo de Impacto Ambiental e Social. No resumo, a ERM assegura que o megaprojeto poder ser benéfico para o país, desde que em sua concepção, construção e operação sejam incorporadas as melhores práticas internas em matéria ambiental, econômica e social, sendo que para isso faz vários requerimentos.
Mas revela precisos riscos e ameaças ao ambiente desse país centro-americano de 6,1 milhões de habitantes e 129.429 quilômetros quadrados, que a obra partirá horizontalmente em dois ao atravessar o lago Cocibolca, também conhecido como Grande Lago da Nicarágua, o segundo maior corpo de água doce da América Latina, com 8.624 quilômetros quadrados.
Salvador Montenegro, ex-diretor adjunto do Centro para Pesquisas em Recursos, da estatal Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua, destaca que o resumo executivo sugere estudos adicionais no lago para avaliar os riscos ao ambiente e recomendar ações para mitigá-los. “São observações que venho realizando e nunca foram levadas em conta, ao contrário, nos acusam de trairmos o governo e estarmos na oposição, quando só o que fazia era tentar preservar a saúde do Cocibolca”, ressaltou Montenegro à IPS.
O cientista foi demitido do cargo na universidade por alegadas pressões do governo do presidente Daniel Ortega, no poder desde 2007 e que apoia o projeto do canal, impulsionado pela agência pró-governamental de investimentos encabeçada por seu filho, Laureano Ortega.
Agora, Montenegro integra o conglomerado de cientistas, acadêmicos, ambientalistas e ativistas da sociedade civil aglutinados no Grupo Cocibolca, abertamente contrário ao projeto do canal. Mónica López, ativista do grupo, resumiu para a IPS as principais descobertas dentro do estudo da ERM que, a seu ver, evidenciam que a obra abriria as portas para uma catástrofe ambiental sem precedentes na América Latina.
Segundo López, a ERM conclui que nem a HKND e nem o governo têm a experiência e capacidade para executar um projeto da magnitude planejada. Por isso recomenda o apoio de instituições como Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, para evitar danos em áreas sensíveis com o Corredor Biológico Mesoamericano, a Reserva Indígena Maíz, o rio San Juan, o lago Cocibolca e reservas periféricas. “O estudo diz que em situações normais essas áreas usualmente seriam consideradas intocáveis por sua fragilidade social e ecológica”, acrescentou a ativista.
A ERM afirma que, se não forem feitas novas análises e aplicadas medidas de proteção e mitigação, “é provável que os impactos sejam significativamente piores”. Por isso recomendou estudos para medir os riscos do canal por atividades sísmicas, outro para medir o impacto no lago dragado e as ameaças da introdução de salinidade na sua água doce, bem como outros sobre o risco de o canal reduzir o fluxo do lago para o rio San Juan.
Também conclui que, “sem ações enérgicas e contínuas por parte da HKND e do governo”, nem mesmo a Rota quatro (a selecionada e única considerava viável) teria um impacto claramente positivo para o ambiente que justificasse sua construção.
Com base no resumo da ERM e nas considerações de cientistas e especialistas locais e internacionais, o Grupo Cocibolca enviou uma carta ao presidente, no dia 26 de outubro, pedindo a revogação da lei que deu vida ao projeto do canal. Ortega não respondeu, mas a HKND, por intermédio de seus funcionários fora da Nicarágua, anunciou a continuação de pesquisas para pôr o projeto em andamento, com custo previsto de US$ 50 bilhões, a obra de maior envergadura em nível mundial nos últimos anos.
O assessor-chefe do projeto na HKND, Bill Wild, informou à imprensa local que a companhia realizou “algumas otimizações com maior custo para o projeto, a fim de evitar e reduzir impactos ambientais e sociais, e minimizar os riscos”. Segundo o assessor, os estudos iniciados em 2013 continuarão até 2016 e serão completados com pesquisas adicionais, topográficas e hidrológicas, encomendadas à empresa australiana CSA Global.
O vice-presidente executivo do HKND Group, Kwok Wai Pang, afirmou ao jornal El Nuevo Diario que, depois de conhecer o estudo da ERM, “serão feitas mais pesquisas em profundidade na rota”, e acrescentou que, “durante o estudo de viabilidade, fizemos análises topográficas, geológicas, hidrológicas e arqueológicas, e coletamos um volume grande de informação sísmica, níveis de água, intrusão salina, entre outros, para elaborar um projeto conceitual”.
Também Telémaco Talavera, porta-voz da presidencial Comissão do Grande Canal Interoceânico da Nicarágua, minimizou as observações da ERM e de ambientalistas. Em conversa com a IPS e outros três jornalistas, se mostrou confiante na capacidade da HKND para “resolver com grande sabedoria qualquer inconveniente que surja, e que são normais nesse tipo de projeto de grande envergadura”. Mas, apesar do otimismo do governo e da HKND sobre o projeto, outros fatores alheios ao tema ambiental pairam sobre suas perspectivas.
Por um lado, meios especializados afirmaram, em setembro, que, com a atual crise financeira na China, o magnata por trás da KHND, Wang Jing, havia perdido até 84% de sua fortuna, calculada anteriormente em mais de US$ 10 bilhões e agora reduzida a aproximadamente US$ 1,2 bilhão. Por outro lado, a crescente resistência dos camponeses assentados na rota do projeto prejudicou o clima internacional para os negócios do grupo, segundo a ativista López.
No país foram realizadas 55 marchas contra o projeto. A última reuniu, no dia 27 de outubro, em Manágua, camponeses afetados procedentes de diferentes partes do país e outros manifestantes, e teve grande repercussão na mídia internacional, por causa dos enfrentamentos violentos entre os que apoiam e os que rechaçam o megaprojeto.
A ERM destaca em seu documento que a rejeição social afeta a viabilidade do projeto. “O processo de expropriação de terra e reassentamento involuntário não atende as normas internacionais. O projeto está em risco de perder sua licença social para operar e pode colocar em perigo sua viabilidade, se não forem respeitadas as normas internacionais”, adverte.
Até agora, o governo deu o aval à KHND para a expropriação de 2.909 quilômetros quadrados de terras na rota traçada. A lei do canal foi aprovada em 2013, mas só em dezembro de 2014 o projeto decolou, com obras menores na zona sul do Oceano Pacífico. A obra unirá os oceanos Atlântico e Pacífico com uma rota de 276 quilômetros de comprimento, 105 dos quais atravessando o lago Cocibolca.
A HKND projetou que a construção demoraria cinco anos a partir de 2013 e estimou que em 2019 o canal entraria em operação, mas a ERM projeta que a infraestrutura não estará pronta nesse prazo.