No dia 19 de maio passado, o Papa Franciscoteve uma longa conversa com os membros da presidência do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano). Os interlocutores do pontífice eram seis eclesiásticos: o cardeal Rubén Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá, presidente; Dom Carlos Collazzi, bispo de Mercedes,Uruguai, primeiro vice-presidente; Dom José Belisário da Silva, arcebispo deSão Luís do Maranhão (Brasil), segundo vice-presidente; cardeal José Luis Lacunza Maestrojuan, bispo deDavid, Panamá, presidente doConselho para os Assuntos Econômicos; Dom Juan Espinoza Jiménez, bispo auxiliar de Morelia,México, secretário geral; e o padreLeonidas Ortiz, diocese de Garzón,Colômbia, secretário-adjunto.
A reportagem é de Luis Badilla, publicada no sítio Il Sismografo, 05-06-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“O Santo Padre mostrou sua preocupação com os problemas sociais que estão sendo vividos na América em geral. Preocupam-lhe as eleições nos Estados Unidos pela falta de uma atenção mais viva à situação social dos mais pobres e excluídos. Preocupam-lhe os conflitos sociais, econômicos e políticos da Venezuela, Brasil, Bolívia eArgentina (…) De repente, pode-se estar passando por um “golpe de Estado branco” em alguns países. Preocupam-lhe as carências do povo haitiano e a falta de diálogo das autoridades dos países que compartilham a ilha, Haiti eRepública Dominicana, a fim de encontrar uma solução legal aos migrantes e aos deslocados. Preocupa-lhe a forma de entender o que é um Estado laico e o papel da liberdade religiosa por parte de algumas autoridades mexicanas. O papa se sente animado ao ver o avanço que está sendo dado nos processos de paz na Colômbia; também lhe anima a sua próxima viagem a esse país para fazer a visita pastoral a um povo que foi tão atingido pela violência e que precisa empreender caminhos de perdão e reconciliação. O papa se entusiasma quando começa a falar da Pátria Grande que é a América Latina e dos esforços que não devem cessar para alcançar a integração dos nossos povos. Para isso, é necessário aproximar posições, restabelecer o diálogo social e buscar soluções compartilhadas aos desafios que o mundo de hoje apresenta.”
O diagnóstico do Papa Francisco
A imprensa relatou com um certo interesse as reflexões atribuídas ao papa nesse importante encontro com as autoridades do órgão eclesial que, desde 1958, coordena as 22 Conferências Episcopais do México ao Chile. O mesmo aconteceu em ambientes políticos latino-americanos, incluindo governos e aparatos diplomáticos. O relato foi dissecado por analistas, observadores e especialistas. Para muitos, pareceu ser um paper importante.
Em primeiro lugar, despertou curiosidade a lista dos países que o Santo Padre teria evocado e nos quais se vivem crises de natureza e relevância diferentes, embora preocupantes: Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Haiti,República Dominicana, México e Colômbia.
Em segundo lugar, também chamou a atenção de analistas e observadores uma segunda lista, o das situações críticas que Francisco descreveu, primeiro genericamente, como “problemas ou conflitos sociais”, e, posteriormente, quando abordou esse diagnóstico geral com essas frases específicas: “lições nos EUA, situação social de pobres e excluídos, carências, falta de diálogo, migrantes e deslocados, Estado laico e liberdade religiosa, processos de paz, diálogo social, aproximação de posições e soluções consensuais”.
Tudo o que o papa listou não só é verdade, mas também, muitas vezes, se trata de questões que fazem manchetes todos os dias na América Latina e em outros lugares. Muitas vezes, fala-se disso também na imprensa internacional, aumentando a percepção, verdadeira, de um continente que lida com graves crises sociopolíticas e institucionais que não são registradas desde o período do retorno aos regimes democráticos.
Particularmente, entre as opiniões e impressões do papa, porém, provocou e ainda provoca discussão entre políticos e diplomáticos a expressão “golpe de Estado branco”.
Na América Latina, dizer “golpe de Estado branco” tem conotações históricas, sociopolíticas e institucionais precisas. Significa a derrubada de fato de um governo, forçado, sem sangue nem convulsões sociais, a mudar de rota, de programa e de projeto, ou destituição de um governante através de manobras jurídicas, parlamentares e constitucionais de legitimidade democrática questionável.
Em ambos os casos, embora as modalidades sejam diferentes, o denominador comum é um só: inversão da vontade democrática do eleitorado.
O último “golpe” na América Latina há 14 anos
Desse modo, na América Latina, muitos se perguntaram, e ainda se perguntam, a que o Papa Francisco se referiu, ou queria se referir, especificamente. Obviamente, não temos uma resposta à pergunta, legítima e oportuna. Podemos apenas levantar hipóteses, e, entre estas, a mais plausível, nos faz acreditar que o Santo Padre tenha querido expressar, sobretudo, um temor, justamente, de que as crises atuais, em vez de encontrarem soluções democráticas, abertas e declaradas, preferivelmente consensuais, sejam contornadas com artifícios obscuros, pseudojurídicos, que, no fim, não resolvem nada, remetendo a novas crises, piores ainda, aquilo que não se quis enfrentar com honestidade e clareza no momento necessário.
É preciso lembrar que, na América Latina, a última tentativa de golpe em 2002 contra Hugo Chávez, fracassou depois de poucas horas. Depois, no entanto, registraram-se duas derrubadas de governos que, agora, passam pelo nome de “golpe branco ou golpe suave”, e que foram bem sucedidos: em Honduras, contra Manuel Zelaya (2009), e noParaguai, contra Fernando Lugo (2012).
Muitos definiriam a recente suspensão da presidente Dilma Rousseff no Brasil como um “golpe branco” e muitos temem uma situação semelhante na Venezuela, com o presidente Nicolás Maduro. As insistências e as pressões, por enquanto fracassadas, provenientes de várias partes, muitas vezes acompanhadas por declarações belicosas, a fim de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) aplique na Venezuela a chamada “Carta democrática”, isto é, declare que, naquele país, desapareceu o Estado de direito, é interpretada como uma tentativa de “golpe branco”.
O poder onívoro do dinheiro
As preocupações do Papa Francisco com a situação geral da América Latina, visível e notoriamente piorada desde o dia em que ele, em fevereiro de 2013, pegou um avião para participar do conclave que devia eleger um novo papa depois da renúncia de Bento XVI, são mais do que justificadas e fundamentadas.
São as mesmas preocupações dos governos da região e dos analistas mais atentos e bem informados. São também preocupações compartilhadas e expressadas publicamente pelas Conferências Episcopais latino-americanas.
O núcleo do diagnóstico está na constatação da grave e persistente deterioração da política, dos políticos e dos partidos, ao mais baixo nível de popularidade e consenso. A insatisfação com a luta política é generalizada, desde oRio Grande até a Patagônia, e, embora possa parecer uma generalização inapropriada, a percepção é de que hoje as classes governantes latino-americanas são sinônimo de corrupção e de ineficiência.
A bela temporada do retorno às democracias, depois de anos muito duros de repressão militar, parece uma recordação atávica e, em vez daquelas grandes mobilizações pela liberdade e pelos direitos humanos, entrou em cena a resignação e a indiferença.
Então, de várias partes e de modo cada vez mais insistente, na América Latina, diz-se: sem política, sem dialética democrática autêntica, sem debate político e cultural, vencem os mais fortes, ou seja, o dinheiro, instrumento capaz de fagocitar qualquer coisa.
É o poder imenso desse dinheiro, transnacional, que finalmente toma as decisões e condiciona a vida dos povos e das suas instituições. O dinheiro e a corrupção substituem as eleições. As manobras obscuras dos palácios, dentro e fora da região, substituem os verdadeiros e legítimos atores nacionais. Os interesses das altas finanças e da geopolítica tomam o lugar das necessidades e das prioridades dos povos.
Veremos…
Se os temores do Papa Francisco, quando ele fala de “golpe de Estado branco” (sem sangue), são aqueles que aparentemente nós entendemos, há dois testes para medir o grau de veracidade histórica: as soluções das crises naVenezuela e no Brasil. É questão de pouco tempo. Veremos